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Demolir uma vida

A Ana, de lenço lindo azul colorido na cabeça, estava mesmo ao virar da esquina. Estava com o marido, em frente à sua casa. Iam tirando uma pedra de cada vez, das pequenas, porque as grandes eram muito pesadas. Pelo meio, uma caixa de ovos cheia de ovos inteiros apareceu nas suas mãos. E logo depois, apareceu o almofariz, para esmagar o que for. 

Ao virar da esquina, horas antes, o almofariz gigante e amarelo, comandado pelas mãos invisíveis de uma política de interesses, esmagou tudo o que fosse. Esmagou a vida da Ana e a do marido, que viram paredes e telhados e tijolos a cair nos pratos em que comiam, a sentar na mesa da sala de jantar, a dormir nos seus lençóis.
Virei a esquina e vi a Ana. E para lá dá Ana, os escombros habitavam descansadamente pelos seus móveis escondidos, enquanto tudo acontecia como todos os dias, para lá do quarteirão ao lado. E a Ana, com um sorriso, e dizendo para não sujarmos a roupa, disse que ali no quarto ou sala ou algures no meio, estava o saco que tinha o arroz. E era só isso, o resto já não tinha remédio nem interesse. Mas o arroz, dava jeito. 

O marido da Ana olhava, com os olhos em algum lado longe, e recolhia o metal que pudesse ser vendido para derreter, como a sua casa.

Então, vamos lá procurar o arroz!

Ana, é antes ou depois desta parede? Aqui, pedra atrás de pedra atrás de pedra, com braços amigos que talvez não voltem mais, era o sítio das plantas. A Ana tinha muitas plantas e foi Jardineira da câmara durante 10 anos. Sabia mais da vida das plantas do que eu, certamente, sem ter estudado botânica e biologia e pedologia. Apareceu o primeiro sinal de vida, pu-lo ao bolso, entre um tijolo e um azulejo mandados para o chão da "rua". A Ana Jardineira, em cima da sua casa, à procura do arroz, viu aparecer mais uns vasos de plantas, que já tinham tantos anos e que foram companheiras dos compridos e modestos dias. Eram vasos grandes, de plástico preto e deformado pelo peso dos últimos dias. Eram vasos pesados, deformados pelo peso de uma política de interesses que a câmara, onde a Ana Jardineira cuidou da vida, cegamente aplicou. Um vaso pesado veio ao meu colo, a caminho de uma esquina protegida da minha casa. A Ana lá ficou, generosa, dizendo que outras plantas que apareçam, põe de lado para eu trazer depois.

A Ana lá ficou, desprotegida sem telhado, deformada pelo peso das paredes, esmagada pela reconstrução dos tijolos. 

A Ana, antes de eu ter de vir embora, disse que ia entregar a casa no final do mês, mas "eles" vieram antes.

Não sei se encontraram o arroz. Mas já podem fazer uma omolete.

 

por Ana Feijão